sábado, 18 de dezembro de 2010

Quando eles nos deixam


Entro na sala, e é como se tudo faltasse só porque ele falta. Desde ontem que ando para aqui sem saber o que fazer, abro portas, fecho portas, olho em volta, como se isso chegasse para o fazer voltar a casa. Foi a primeira vez que passou a noite fora. E sem aviso. Ligo às amigas, na tentativa de um consolo, de uma palavra de conforto. Para isso é que se inventaram as amigas.

Nada feito.

Riem-se de mim. Deve ser a isto que se chama "solidariedade feminina".

"Cinco anos, dizes tu? Aguentou cinco anos? Meu Deus, mas isso é uma eternidade! O meu não aguentou nem dois!

"E o meu? Ao fim de um ano, adeusinho!"

Estremeço.

Nem me passa pela cabeça que ele não vai voltar.

Elas voltam a rir.

"Até pode ser que volte, não digo que não, mas vais ver, nunca mais te entendes com ele...Vem mudado, com uma linguagem diferente..."

Desligo o telefone.

A minha filha também não me ajuda:

"Ó mãe, não penses mais nisso, procura mas é um novo...

"Tu não me digas uma coisa dessas! Ele vai voltar"

"Isso é o que dizem todos"

Tento ocupar o tempo - mas sem ele é impossível.

Sem ele não consigo ouvir música.

Nem ler um jornal.

Nem partilhar histórias.

De cada vez que olhava para ele, tinha a certeza de que havia de viver o resto da minha vida ao seu lado.

A minha filha ria-se, porque esta tinha sido uma relação assumida muito tarde.

"Quem te viu e quem te vê... - murmurava ela - "Ao princípio, quando toda a gente te falava nele, zangavas-te, juravas que nunca iria entrar na tua vida...E agora..."

E agora - oh felicidade! - ouço a campainha da porta, é ele que volta, eu tinha a certeza.

Reconheço-o imediatamente, ainda antes de abrir a porta do elevador, e a minha vida volta a ter razão de ser, enquanto oiço a voz do homem que me diz:

"Prontinho, aí o tem de volta, formatei-lhe o software, instalei-lhe mais uns programas, mais um antivírus profissional, e está com três gigas. Com as deslocações, são 170 euros, mais IVA."

Alice Vieira

Na velhice ainda darão frutos


Depois da minha última crónica, li uma entrevista de D. Duarte Pio de Bragança em que este dizia que "daqui a pouco vamos ter a lei da liberdade da eutanásia com a interrupção da velhice. Quando uma velhice é incómoda, quando fica cara, quando é traumatizante para a família, ter aquele avô que custa caro, que incomoda toda a gente, que já está completamente tonto, não se pode interromper a sua velhice sem pedir a opinião do próprio".

O herdeiro da Casa Real colocou o dedo numa ferida que se tende a manifestar num futuro próximo, uma vez que à discussão e aprovação do testamento vital se seguirá com a maior das probabilidades a discussão sobre a eutanásia, sem que as pessoas sejam devidamente esclarecidas do que está em causa, ou que lhes seja dito que os contornos desta figura transcendem na maior parte dos casos a situação daqueles que estão gravemente enfermos. Corremos assim o risco de se vir a sujeitar muitas pessoas de idade avançada a pressões inqualificáveis, já que tendo elas plena consciência do abandono em que se encontram, se sentem, ao mesmo tempo, um peso para a família, podendo vir a sentir-se coagidas pela sociedade a deixarem de viver.

Ora, não se pode construir uma sociedade justa sem cuidar dos direitos e interesses dos mais velhos cada vez mais numerosos. É certo que, por norma, os mais velhos não falam das suas fraquezas. Não o fazem porque não querem incomodar as suas famílias, atarefadas com as aflições do dia-a-dia, concentradas nas exigências crescentes dos mais novos. Evitam dizer-lhes que lhes falta o aquecimento no Inverno, o dinheiro para os remédios, as pernas para subir as escadas de casa, os braços para se lavarem. Receiam dar parte fraca, porque não querem constituir sobrecarga, e porque não querem ser engaiolados nas antecâmaras onde todos os dias contarão os sobreviventes pela manhã, até que a sua hora chegue.

São razões de justiça e caridade que impedem uma sociedade de ignorar os mais velhos, mas também o interesse de todos nós que chegaremos um dia a esse estágio de vida. Por outro lado, uma sociedade que não trata bem os mais velhos comete um terrível desperdício. Eles fazem falta à formação dos mais novos, não só pela elementar razão que não têm de lidar só com o que é bom, bonito e agradável na vida, mas também porque, normalmente, são repositório de saber, de conselhos e de experiência de vida. E, numa altura em que houve a alteração do padrão familiar que descrevi na minha última crónica, em que as crianças vão perdendo as referências e em que os pais não têm disponibilidade para lhes conceder uma parte razoável do seu tempo e para lhes proporcionar a educação que só se pode receber em casa, um avô, uma avó ou uma tia, poderiam compensar muitas dessas ausências e faltas. Afinal, era assim no passado, quando éramos crianças, quando os velhos se integravam sem custos no agregado familiar e nos faziam companhia e nós também lhes fazíamos companhia. E, a meu ver, não há razões para que não volte a ser assim.

Não se pode exigir que seja o Estado a mudar todos os nossos comportamentos mas convém que as suas políticas e as suas leis promovam valores e práticas justas. E, nesta matéria, é incompreensível que um agregado familiar possa deduzir, no IRS, as despesas que um dos seus membros seniores paga a um lar, mas não tenha qualquer benefício, nem sequer a possibilidade de fazer uma dedução equivalente, no caso de optar por cuidar dessa pessoa em sua casa, onde é suposta encontrar melhores cuidados e carinho, e onde pode ser, também, da maior utilidade.

Rui Moreira

Sabemos o que é o amor?

A sociedade portuguesa, como a maioria das sociedades do Mundo desenvolvido, está a envelhecer. O tempo passa e a diferença entre a percentagem de juvenis e seniores cresce a favor dos seniores. Quando ficamos mais velhos ficamos mais sábios, mas também ficamos mais dependentes do que souberem fazer os nossos filhos.

Nesta época de evolução, com a esperança média de vida a crescer, estamos ainda a aprender. Vivemos ansiosos sem a certeza de haver reformas para pagar aos que agora trabalham e com mais dúvidas ainda para os que vierem a entrar no mercado de trabalho. Vivemos com um dilema ainda maior, sem saber que lar podemos e devemos dar aos nossos seniores. Vivemos sem forças para dar aos nossos pais o que sonhamos que um dia os nossos filhos nos possam dar a nós.

Nesta época de Natal, no meio de uma crise onde crescem os egoísmos, procuro o significado da palavra amor e descubro um sinónimo em família. Não me sinto satisfeito com o que dou, embora me sinta pleno pelo que recebo, e quero pedir a quem me lê, e a mim próprio, para fazer de 2011 um ano de amor aos pais.

Se queremos uma sociedade melhor vamos ter de nos esforçar mais para retribuir aos que nos ajudaram a chegar até aqui. Enterremos as desculpas do tempo que falta, abdiquemos de parte do consumo que nos leva o dinheiro, enchemos o coração de amor pelos seniores que nos criaram. Só é preciso disponibilidade para encher de beijos quem nos lançou na vida e dizer vezes sem conta: amo-te, mãe!

Paulo Baldaia

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

moderna de Os Lusíadas

Adaptacão moderna de Os Lusíadas

I
As sarnas de barões todos inchados
Eleitos pela plebe lusitana
Que agora se encontram instalados
Fazendo aquilo que lhes dá na real gana
Nos seus poleiros bem engalanados,
Mais do que permite a decência humana,
Olvidam-se de quanto proclamaram
Em campanhas com que nos enganaram!

II
E também as jogadas habilidosas
Daqueles tais que foram dilatando
Contas bancárias ignominiosas,
Do Minho ao Algarve tudo devastando,
Guardam para si as coisas valiosas...
Desprezam quem de fome vai chorando!
Gritando levarei, se tiver arte,
Esta falta de vergonha a toda a parte!

III
Falem da crise grega todo o ano!
E das aflições que à Europa deram;
Calem-se aqueles que por engano...
Votaram no refugo que elegeram!
Que a mim mete-me nojo o peito ufano
De crápulas que só enriqueceram
Com a prática de trafulhice tanta
Que andarem à solta só me espanta.

IV
E vós, ninfas do Coura onde eu nado
Por quem sempre senti carinho ardente
Não me deixeis agora abandonado
E concedei engenho à minha mente,
De modo a que possa, convosco ao lado,
Desmascarar de forma eloquente
Aqueles que já tem no seu gene
A besta horrível do poder perene!

autor desconhecido